Sobre amor livre.

domingo, 23 de fevereiro de 2014
Eu não nasci pra sofrer.
Nem você.
E no meio das relações de posse
Larguei mão da propriedade privada.
Mas não do amor
No meio da posse...
Abri mão. 
De você. 
Nunca mais de mim.
Larguei as correntes.
Soltei as amarras.
Minhas.
Suas.
Nossas.
Não quero que ninguém seja meu.
Nem meu namorado,
Nem meu amante.
Não serei nunca mais posse de...
Alguém?
Mas quero alguém aqui.
Que fique.
Sem contrato social
Sem anel de compromisso
Sem coleira.
Eu quero alguém.
Alguém que vá.
Embora.
Por uma semana
Dois meses
Vinte e cinco anos.
Alguém que não me jure eterno
Mas me sinta amor
Me beije amor
Me ame amor
Alguém que não seja único
Nem insubstituível.
Quero amar todos os dias
A mesma pessoa
As mesmas pessoas
Outras pessoas
Quero amores para sentir
Sem precisar gritar ao mundo
Mas que eu possa gritar ao mundo

Eu quero alguém que entenda
Com o máximo de urgência
Que amor livre
É sobre
Amar.

A missão vai ser cumprida... vou cortar sua pica!

domingo, 9 de fevereiro de 2014
Essa semana, no dia 6 de Fevereiro, foi o dia internacional da intolerância à mutilação genital feminina. 

(Lara Luccas)

Uma das coisas que mais escutei - e ainda estou escutando - é que "não se deve mexer na cultura alheia", com o objetivo de silenciar mais ainda esse tipo de agressão. Ao meu ver, matar mulheres, tornar seu sexo e parto extremamente dolorosos, retirar delas o prazer, arrancar seu clitóris sem anestesia quando ainda são crianças NÃO é cultura, é opressão! É uma chacina de gênero. 

Em contrapartida, essas mesmas pessoas que apossam-se da desculpa cultural para fechar os olhos mais ainda para todo o sangue que escorre, apropriam-se da cultura negra, indígena e oriental para satisfazer seus fetiches nojentos. Acham-se no direito de desconstruir a cultura alheia para se encaixar melhor na sua visão preconceituosa de mundo, a não ser quando tem mulher morrendo. Nesse caso, pedem que silenciem. Parem de gritar, mulheres! Não, não toquem aí, é patrimônio cultural de outra região, você não pode se intrometer. Só que enquanto tiver mulher morrendo por conta de uma tradição patriarcal e machista, eu não vou me calar - e nem você deveria. 

A indiferença das pessoas é gritante. É um "vamos deixar para lá, ninguém mais faz essas coisas" sendo gritado numa realidade muito diferente, onde isso ocorre todos os dias em várias partes do mundo. São mulheres morrendo, são mulheres sangrando, são mulheres gritando de dor. E ninguém se solidariza com elas. Ninguém seca as lágrimas delas. Ninguém explica para elas que aquilo ali não é obrigatório, não é lei, não é certo - é uma opressão diária que elas sofrem. Mulheres que são induzidas à levar suas próprias filhas para sofrerem o que elas sofreram, mas sem dúvidas por que não conhecem outra realidade ou outra possibilidade se não aquela. Pra quem só conhece a dor, o que é anestesia? 

(PaguFunk)

Eu ainda lembro quando a Lidiane (integrante do PaguFunk) veio me contar, toda sorridente, que estava participando de um coletivo feminista de funk. Na Baixada. Na periferia. Onde ninguém nunca aceitou que ali morava um banquete de cultura. Ela pediu pra eu escrever um funk feminista e depois ir gravar com o PaguFunk (eu sei Lidi, ainda estou te devendo esse funk!). Eu nunca vou ser capaz de esquecer a empolgação e felicidade dessa minha irmã de alma. De militância. De luta. De Baixada Fluminense. 

O PaguFunk é uma mistura necessária. Era algo que a militância feminista carecia. Sair um pouco dos muros das universidades, sair das peles brancas e da voz mansa. Era preciso mostrar para o Rio de Janeiro, para o Brasil e para o mundo a riqueza e a resistência da favela. Então o PaguFunk foi ganhando espaço, gritando por espaço, lutando por espaço. Foi deixando claro que não estava ali para pedir permissão de ninguém. A favela existe: e ela grita! A mulher existe: e ela canta! A revolução existe: e é uma mulher negra e pobre cantando funk!

Comecei a ler muitos comentários sobre a PaguFunk. Comentários não muito legais. Comentários misóginos. Comentários de ódio. Comecei a ver ameaças às minhas irmãs. Afinal, onde já se viu mulher pobre falar? Onde já se viu mulher pobre gritar? Onde já se viu mulher pobre ameaçar? E elas ameaçam. Se não com o facão pendurado na cintura, se não com um falo para "corrigir" aqueles que fogem dos padrões, com uma garganta que grita. Elas ameaçam quando estão prontas para o combate (keep calm...). Elas ameaçam quando trazem a favela para o asfalto, quando fazem a negritude descer no passinho. Quando questionam os papéis sociais de cada gênero (e questionam a normatividade de apenas dois gêneros), elas ameaçam. Elas ameaçam quando começam a cantar. Elas ameaçam por que a missão vai ser cumprida. Elas ameaçam por que o mundo, no fundo, sabe a força da mulher - e morre de medo pelo dia que elas descobrirem sua própria força. 

Um dia a Lidi me disse "o que me acalma é que, se estão me perseguindo, é por que eu estou no caminho certo". Isso nunca fez tanto sentido. As meninas estão cantando que vão cortar picas! Cortar fora, não deixar nem as bolas para contar história. Arrancar. A sangue frio. Sem anestesia. Cortar com requinte de crueldade, sem doçura, sem carinho. Cortar com a força que só uma mulher oprimida consegue ter. Cortar com a força que só uma guerreira consegue. Cortar por que sabe como dói, por que sentiu a dor durante toda uma vida. Cortar não como vingança, mas como resposta. Como destino. Há quem diga que elas só querem se vingar, eu discordo. Isso é autopreservação. Isso é resistência. Isso é sobrevivência. 

(PaguFunk)

"Se chegar lá na favela com esse papo de machista" / "Se ficar se aproveitando da boceta de novinha" / "É militante de esquerda e bate na companheira?" / "É reacionário e fecha com o Bolsonaro?" Esse são os homens que terão suas picas cortadas. Se você não é molestador, não é estuprador... por que está tão incomodado? Consigo ver dois motivos. Um deles é o mais claro: No gozo masculino ninguém toca. Ninguém impede um homem de gozar, ninguém tira dele o prazer. No homem ninguém mexe, a pica ninguém corta. O outro é ainda mais preocupante: Ninguém está querendo defender estuprador. Ninguém quer defender estuprador. Os homens querem defender seu próprio pau. Quando um homem fala que "aquilo ali não foi estupro, ela bebeu por que quis" é por que ele ou já se aproveitou de alguma mulher bêbado ou sabe que se tivesse oportunidade, se aproveitaria. Quando ele fala que "não é estupro, eles são casados" é por que ele já estuprou sua companheira diversas vezes. Quando ele justifica um abuso colocando a culpa na vítima, é por que ele mesmo não quer receber o fardo de "estuprador". 

Enquanto as mulheres estão lutando calmamente, de voz baixa e sempre um passo atrás do homem, ninguém vai se importar. Ninguém vai xingá-las. Elas incomodam e são perseguidas quando começam a se comportar de uma maneira mais subversiva. Quando uma mulher aprende a falar por si, todos os homens sentem medo. 

É preciso entender, também, que querer moldar as falas da favela num molde academicista e elitista é um apropriamento. O asfalto não pode - e não deve - se apropriar das falas da favela como se entendesse a vivência da realidade do pobre, do negro. Não entende. Não pode diminuir ou chamar as meninas de exageradas por que elas gritam que vão cortar picas. 

O "vou cortar sua pica" tem duas grandes referências na minha cabeça. Uma é a que eu falei no início do texto: A mutilação genital feminina. Outra, talvez a Lidi me entenda, são "As Justiceiras do Capivari". 

A mutilação genital feminina é uma realidade cruel. É uma tortura diária. E sobre isso só escuto o silêncio, o barulho dos grilos ou, no máximo, um pedido para deixar esse assunto para depois. Por que é cultural (aí sim é cultural) dessa sociedade machista e patriarcal ensinar que o prazer não cabe à mulher. 

Só que os homens... bem, os homens só estão preocupados com as funkeiras que vão cortar as picas dos estupradores, molestadores, reacionários, agressores! 

Que cortemos todas as picas, então.

(Todo o meu apoio, amor e sororidade às meninas do PaguFunk que estão sofrendo perseguições, ameaças e chuva de ódio.) 

"Vem mulher com a mão pro alto pra fazer revolução" 
Machistas não passarão...
E a gente vai no passinho. 

Carta Aberta do Coletivo PaguFunk: 

"PaguFunk é um coletivo autônomo e apartidário de mulheres funkeiras que transmite através da cultura funk uma mensagem feminista, sobre nosso cotidiano e das nossas irmãs das/nas favelas e periferias. O nome é uma referência à militante política de esquerda e artista da década de 20, Patrícia Galvão, conhecida como Pagu. A opção pelo funk vem como afirmação de uma cultura popular , que historicamente é marginalizada e deturpada pelas classes dominantes em sua ânsia capitalista de se apropriar e/ou diminuir tudo o que vem da favela.
As rimas da PaguFunk nasce em um território onde a cada 5 horas é registrado¹ um caso de estupro. Na região onde apresenta os maiores índices² de homicídios contra jovens do estado do RJ. Onde matam uma trans* por dia³.
É nesta conjuntura que mulheres optaram fazer versos e compartilhar suas vivências, como forma de transformar o cotidiano, onde é nulo o incentivo a produção e até mesmo do consumo não comercial dos aparelhos culturais e de entretenimento.
Buscamos incentivar o empoderamento e autonomia através de uma postura do "Faça Você Mesma", através de saraus, cantando nas praças e organizando oficinas musicais e de gravação, em bibliotecas comunitárias feministas e populares. Repudiamos o viés colonizador, com o qual muitos grupos de fora agem nestes locais, só os usando como objetos de pesquisa ou "circo exótico". Temos profundo respeito pela cultura local e pelos saberes individuais e são essas pessoas que influenciam diretamente nosso modo de ação. Ação esta que tem como sonho e meta transformar a realidade local desesperadora que vivenciamos diretamente nas ruas, becos, nos dias de alagamento, nas filas dos hospitais, na violência policial, nos ônibus lotados que somos obrigadas a pegar quando vamos trabalhar, principalmente, no que tange a classe proletária, negrxs, mulheres e trans*.
Nesta caminhada pela militância política já cantamos desde encontros estaduais de mulheres até em calçadão de bairro. E entre esses convites surgiu a oportunidade de participarmos da Residência Artística Libertária Feminista (REAL), onde foi gravado um vídeo que vem sofrendo vários ataques machistas e misóginos por parte de reacionários na internet.
Este texto surge como meio de reflexão sobre algumas respostas negativas que este vídeo teve. Agradecemos também todas as companheiras, amigas, ativistas e militantes, pelas palavras de apoio, carinho, identificação e afinidade. O texto está cheio de chavões, frases já debatidas quase a exaustão dentro dos movimentos feministas e de mulheres, mas não conseguimos escapar disto, pois aparentemente ainda há pessoas que não entenderam, uma vez que a maioria das respostas negativas que tivemos, é baseada dentro do senso comum machista e a gama de misoginia e ódio que ele desperta. Não nos interessa, entretanto, debater ou conversar com estas pessoas, eles já escolheram um lado, já tem uma posição, um modo de atuação que é totalmente antagônico ao nosso, somos inimigas destes homens machistas e misóginos.

Então, mais uma vez, machismo e feminismo não são as mesmas coisas, o primeiro é derivado direto da estrutura patriarcal com que foi moldado o nosso processo civilizatório, nossa cultura e o reflexo disto em hábitos e costumes que levam a opressão, espancamento, morte, escárnio, estupro, depreciação e não aceitação de tudo aquilo que foge aos padrões masculinos e heteronormativos. Já o feminismo é uma resposta a isto, um meio legitimo de auto defesa de um grupo historicamente oprimido. Não somos nós mulheres, lésbicas, degeneradas, trans*, homos, que saímos em gangues espancando, estuprando e torturando pessoas dissidentes do padrão patriarcal. Isto quem faz são eles, que impregnam o mundo com uma cultura de ódio que só beneficia uma ínfima parcela da população, enquanto a maioria é incentivada pela ideologia machista a duelar entre si.
Para quem ainda não ouviu a música, ela fala de uns tipos bem específicos de homens, fala dos pedófilos, dos agressores, dos reacionários... Uma vez, ao cantarmos esta música em uma praça e sermos abordadas e questionadas por um homem sobre ela, nossa resposta foi "Se você não é pedófilo, nem agressor, nem machista, não tem nada a temer". Acho que esta resposta continua sendo válida. No entanto a nossa avaliação deste episódio é positiva, sabemos que nenhum grupo oprimido conseguiu o fim desta opressão de uma forma pacífica, foram necessárias revoltas, revoluções políticas, econômicas e culturais. Nos cabe aqui incentivar a outras mulheres que façam o mesmo, gravem vídeos, músicas, escrevam textos, saiam às ruas, se mostrem, vivam, respirem, amem outras mulheres, formem coletivos, produzam diversas formas de arte. Assim como ninguém é machista sozinho, afinal é necessária toda uma estrutura social que respalde isto, ninguém é feminista sozinha, é necessário respaldarmos e apoiarmos umas as outras. Os machistas odeiam estas coisas, perdem o espaço, eles estão acostumados com uma sociedade voltada aos interesses deles, quando mostramos outra, eles piram e perdem. Sabemos que estas respostas que o vídeo teve, significa perda de espaço que eles tiveram, por isto, continuaremos a fazer mais e mais. Ecoaremos nossas vozes nas ruas, nos protestos, nas marchas, nas manifestações, nas escolas, bibliotecas comunitárias incentivando uma educação popular feminista "por nós, pelas outras, por mim”.

¹ Dados do Dossiê Mulher 2013http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/DossieMulher2013.pdf
² Mapa da Violência 2013
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_juventude.pdf
³Dados do Centro de Referência LGBT, órgão da Centro de Referência LGBT, órgão da Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos.