Olhou pro banco e disse: MACHISTA, vai lá!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Fiquei um bom tempo pensando em como começar esse texto. Na verdade, como sempre gostei muito das suas músicas, Emicida, acho que isso vai sair mais como uma carta. Vou tentar te falar coisas que nunca dizem nem pra você, nem pra qualquer homem. Vocês não estão acostumados a ouvir e saber das informações que eu vou contar, então talvez queira se sentar no seu sofá do privilégio masculino.

Trepadeira. Não sou do tipo de mulher que gosta de flor - olha, primeira coisa para te avisar: Nem todas as mulheres são delicadas e ficam apaixonadas ao receber um buquê de flores. Nunca gostei, mas se tem uma planta que me agrada é a trepadeira. Passei minha infância numa casa que tinha um muro coberto por essa planta magnífica. Era um jardim grande e tinha muitos tipos de árvores, flores e matos, mas nenhum deles me causava tanta admiração quando àquela estranha planta que crescia rente ao muro da piscina. Fiquei extremamente triste no dia que tiveram que retirá-la, pois ela causava infiltração no muro da casa vizinha (ou algo assim. Era muito pequena, não lembro direito). 

Então, em primeiro lugar, não acho que mulher nenhuma deva se sentir ofendida a ser comparada com uma planta tão bela. Só que, achar que nenhuma mulher deve se sentir ofendida não anula o que eu acho sobre a sua música. Ela é extremamente machista, mas isso com certeza você já escutou desde o momento que a colocou no youtube. E, bem, esse texto é sobre coisas que homens não sabem (ou não estão acostumados a saber). 

Espero que esteja preparado para o primeiro choque de realidade. É... saber que nem toda mulher é obrigada a gostar de flores não foi o primeiro choque. A primeira revelação que eu quero fazer é que mulher faz sexo. Sim, acreditem. Mulher faz sexo - não somente fazem sexo com mulher. Essa ideia que colocam na cabeça masculina de que mulher é passiva em questão de sexo... bem, é mentira! Mulher faz sexo, mulher gosta de sexo, mulher faz sexo com outra mulher, mulher faz sexo com vários homens, mulher faz sexo antes do casamento, mulher faz sexo para se satisfazer. Mulher goza, mulher goza com homem, mulher coza com mulher, mulher goza sozinha. 

Você goza, Emicida? Faz sexo pra se satisfazer? É... eu também! Eu, minhas irmãs, minha mãe, a sua mãe, a sua tia, a minha prima, as suas fãs. E olha, eu nunca vi ninguém fazer uma música para criticar o homem que gosta de prazer. Mas se a sua visão é tão conservadora nesse quesito, talvez você deva fazer uma "trepadeira parte 2... o outro sexo" e criticar tão fervorosamente também aquele homem que - pasmem! - faz sexo. 

Então, vamos para a segunda coisa que ninguém nunca te contou: Mulher não faz sexo com aqueles que acham que a merecem. Você, acreditando ou não, não é a pessoa ideal para decidir quem é digno ou não de fazer sexo com qualquer mulher. Essa escolha cabe somente a ela. E, por favor, supere esse recalque de "eu fui tão bom e ela não deu pra mim, mas deu pra outros". Nenhuma ação sua torna obrigatório o sexo. Nada do que você faça vai fazer com que seja uma obrigação da mulher dar para você. Agora, se você não sabe lidar com isso - como mostrou que não sabe ao escrever uma música para criticar essa mulher -, bem, é melhor zerar a vida e começar novamente. 

Você ainda deu um toque de "friendzone" na sua música. Que merda de tempero para uma receita que já tá solada antes de ir ao forno. De tantos discursos para fazer coro, você escolheu um que é extremamente infantil. Ou você quer algo mais infantil do que uma pirraça de quando não consegue aquilo que quer? Não está acostumado com isso? Acho que está - ou deveria. 

Emicida, você canta rap. Rap é questionador, revolucionário. Você é negro e com certeza entende o racismo. Só que, infelizmente, enxergar a sua opressão não abriu seus olhos para todos os outros que são oprimidos por razões distintas da sua. Você é oprimido por ser negro - eu sou oprimida por ser mulher. E eu luto por uma liberdade feminina, mas os homens adoram reafirmar que estamos fazendo escândalo por bobeira. Você afirma que fez um poema. Dê o nome que quiser, Emicida, nenhum deles vai anular que o que você fez é machismo. E você, negro, cantor de rap, não está acima do bem e do mal e nada vai me impedir de repetir: Você é machista! 

Só que fica me martelando na cabeça isso de que você deveria ser pelas minorias sociais, pelos oprimidos, pelos injustiçados. É... você tá na luta negra, não está? E mais uma vez, como de costume, eu, mulher, feminista, escuto que a minha luta é menor, sem razão, sem nexo e "para o bem geral da nação" vamos... deixá-la para depois, de lado, ali atrás do armário, bem escondida. Por que ninguém nunca tinha te dito que mulher faz sexo, não é? Só que, pior: ninguém nunca tinha te dito que mulher faz sexo por que quer! 

Como diz Lindy West "A sexualização das mulheres só é aceitável quando não é consensual. Do contrário, é só 'vulgaridade'". Pelo o quê eu to lutando e por quê eu to falando, Emicida? Por que eu não quero que nenhuma mulher mais se veja na obrigação de sexo - e na obrigação de não-sexo. Por que eu não aguento essa sociedade que diz que o sexo, para a mulher, é o maior dos tabus. Eu não aguento essa sociedade que aplaude uma música que reforça o discurso nojento e asqueroso de que mulher boa é mulher pudorosa, mulher santa, mulher que não transa com quem quer - e que não pode querer transar. 

Recuso-me a acreditar que um cantor tão conceituado não saiba da realidade da violência contra a mulher. Da naturalização da violência de gênero. E o que você faz? Reforça esse diálogo. Reforça e faz coro à essa ideia de que existe um tipo de mulher que merece apanhar. Com espada de São Jorge! 

Deixa eu te contar outra coisa que não contam aos homens: Quando ele agride - ou estupra - uma mulher... a culpa é DELE! Não importa se ela negou sexo, se ela estava sozinha, se ela estava com roupa curta. Não importa se você não concorda com o modo de vida dela. Não importa se você acha asquerosa a ideia de que a mulher é tão livre quanto o homem. Não importa se você não sabe lidar com o seu recalque sobre a vida alheia. Não importa nenhum fator desses. 

É, Emicida, a vida é cheia de coisas que nunca contaram aos homens. Se nunca contaram aos homens, também nunca contaram às mulheres. Só que a gente descobre com o tempo essas verdades e tenta mostrar pra vocês: que, se existe liberdade, ela também nos pertence. Sua música fala muito de flores - mas as hierarquiza. Coloca as mulheres - lindas flores - como o patamar mais alto, afinal, homens irão querê-las para além de uma noite. Só que isso é fruto da sua imaginação e de uma criação machista e patriarcal. Nenhuma mulher é melhor do que outra pela quantidade de pessoas que elas levam para a cama. E mais importante: Nenhuma mulher é melhor por que agradou a um homem - e se moldou aos padrões machistas impostos na sua música e na nossa sociedade. 

Eu fico extremamente triste que você tenha escolhido esse discurso para defender, "poetizar" e aumentar. Não é disso que o nosso mundo precisa. O nosso mundo não precisa de mais gente influente falando que a mulher tem que "se dar ao respeito" e se enquadrar em moldes que somente a podam. O nosso mundo não precisa de um cantor de rap dizendo que certas mulheres merecem apanhar. 

Eu não sou uma planta. Eu não sou uma flor, um mato, uma raiz. Eu sou uma pessoa e eu tenho uma vida. E as escolhas dessa vida cabem a mim. O que eu faço da minha vida é escolha minha. Mas, se você quer chamar a mulher que transa de trepadeira, bem... é uma bela planta! 

E eu faço coro a uma frase da sua música: 

ARRASA BISCATE! (O mundo é nosso também!)

(Emicida fez uma postagem no Facebook sobre a repercussão da música. Abaixo direi o que achei da postagem) 

Entendo que talvez você esteja acostumado com um "é ficção" justificando barbaridades. Assistimos novelas e filmes absurdos que propagam preconceitos e reforças discursos extremamente excludentes. Só que, felizmente, não somos obrigados a gostar, apoiar e aplaudir ficções que não nos agradam. E ficção que propagam como "naturais" ações de violência não me agradam - e acho que nem deveriam te agradar. Então, para mim, essa desculpa não é válida. Você é um artista e gostaria de te perguntar se é esse o tipo de discurso que você quer propagar com a sua ficção. É esse tipo de ação que você quer naturalizar?

Você tem outra música que trata da questão no sexo masculino? Pois bem, "Vacilão" não é mais legal que "Trepadeira". Vacilão é o homem que perdeu a mulher que -pasmemos!- não se enquadra na mulher trepadeira. Realmente há uma ligação entre as músicas - mas nem de longe é a ligação que você afirmou. Só que vamos ao ponto que realmente importa: Sua música não é aleatória ao mundo. Ela não está infiltrada em um lugar livre de sexismos, machismos, violência de gênero. Sua música representa exatamente o que é dito pelo senso comum - que mulher tem que se dar ao respeito. Ninguém fala isso de homem, ninguém clama que o homem se respeite, ninguém questiona com quantas mulheres o homem dorme. Quando você cria uma música que reforça o senso comum, você o legitimiza e abre espaço para que as pessoas reforcem seus sexismos e preconceitos. Isso acontece com "Trepadeira", mas nunca iria acontecer com "Vacilão". Emicida, o senso comum diz que o homem é o ápice da nossa sociedade - então, mesmo que ele perca a mulher "certa", ele pode se divertir com as trepadeiras o quanto quiser até encontrar outra mulher "certa". E esse ciclo se repete incansavelmente. Esse ciclo é vicioso e gera uma violência de gênero. Então, não, não é "só ficção". Isso é real e cotidiano na vida das mulheres - mas você precisa descer do seu privilégio para conseguir enxergar. Então... vai descer?!

Você diz que sua opinião sobre a sexualidade feminina não é igual a do senso comum. Diz que não é machista e patriarcal. Então, me explique o motivo de você escolher fazer uma música que vai de encontro com a sua opinião? Há uma razão para isso? É uma poesia mais fácil de fazer - e ser vendida?

Vou responder sua pergunta sobre opiniões diferente: Sim, podemos ter opiniões diferentes. Só que isso não anula o meu direito de criticar sua música. Não tira o meu direito de discordar de você e achar que essa música é simplesmente um desserviço à luta feminista. Então, infelizmente, não estamos do mesmo lado. Não estamos do mesmo lado por que você diz uma coisa - diz ser igualitário, estar ao lado da luta feminista -, mas faz uma música extremamente machista. E não, Emicida, "Rua Augusta" não te deu uma carta branca para escrever quantas merdas quisesse depois.

Você fala da sua história, trajetória e das outras músicas que escreveu. Fala das vezes que disse para escutarem a voz feminina - coisa necessária numa sociedade tão machista. Emicida, não vou jogar confetes em você. Desculpe-me, mas eu, como alguém que sempre admirou o seu trabalho, não vou jogar confetes em você quando você tem ações que deveriam ser normais. Não ser machista não passa da obrigação de qualquer pessoa - principalmente das que assumiram algum papel social.

Não se baseie no pior, Emicida. Não é por que existem raps piores, que você deve se ver no direito de escrever algo machista. Não é por que existem raps que nem tentam enxergar a mulher que você merece palmas.

Eu repito: Não estamos do mesmo lado. Não estaremos do mesmo lado enquanto você não enxergar o desserviço que é essa sua música. Não estaremos do mesmo lado enquanto você continuar achando que tudo se justifica por ser "poesia". Enquanto você não conseguir enxergar os males dessa sua música, não estaremos do mesmo lado - mas espero do fundo do meu coração, que um dia estejamos.

Você PODE escrever uma poesia machista... mas é esse o mundo que você quer deixar para a sua filha? 

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