Sobre não bater em mulher e ser a mulher que não se pode bater

domingo, 11 de agosto de 2013
Feminicídio. Talvez você nunca tenha escutado esse nome, talvez não saiba sobre o que ele se trata. A mídia, o senso comum, a sociedade machista quer que encaremos esse crime com outro nome. Mais poético, novelesco, fácil de digerir e que não remete a o que realmente é: um crime de gênero. Querem que continuemos a repetir "foi crime passional", por que tem um som mais agradável aos ouvidos.

A Lei Maria da Penha acabou de fazer aniversário e cheguei a escutar que a lei é sexista. A pessoa que disse tal absurdo com certeza ainda não teve consciência de que o crime passional, na verdade, é feminicídio.

Eu sei que irei escutar o mimimi de sempre de que "homens também sofrem violência doméstica" e "conheço vários homens que apanham de suas esposas". Para o bom funcionamento do texto - e da minha cabeça - ignorarei. Não vamos tratar exceção da mesma maneira que tratamos a regra, ok? E o que acontece é que a violência contra a mulher está naturalizada. É rotineira. Mulheres morrer por serem mulheres; o que não acontece com o gênero masculino.

Ninguém morre de amor. Não foi o amor que enfiou uma faca de cozinha no peito da mulher. Não foi a paixão que deu um tiro na mulher e a deixou paraplégica. Não é um sentimento de carinho que torna um relacionamento abusivo. Isso ocorre por que no relacionamento patriarcal e machista existe um sentimento de posse. A mulher deixa de ser independente e ter vontade própria para ser instrumento de desejo e vontades do marido. O homem aceita que tem controle sobre sua esposa, entende que é um direito dele agredi-la, corrigi-la, enquadrá-la na "mulher ideal" para seus conceitos machistas.

A nossa sociedade ensina e educa esse homem - ignorando completamente a mulher, torcendo para que seu marido possa corrigi-la de suas ideias libertárias. Os ensinamentos são básicos e com certeza você já escutou vários deles durante sua vida: Mulher tem que falar mais baixo que o homem, não pode tomar decisões próprias, não precisa trabalhar fora, tem que deixar a casa arrumada, limpa e bem cuidada, tem que educar os filhos nos moldes patriarcais e machistas, tem que estar pronta para sexo sempre que seu marido quiser, não pode negar nada.

A mulher torna-se uma escrava do lar. Objeto de decoração para os amigos de seu marido, objeto sexual quando marido chega bêbado em casa, objeto-saco-de-pancada quando o marido quer liberar a raiva. E tudo é noticiado como um "crime passional". Um crime cometido pela paixão: um sentimento levado ao extremo. Que sentimento é esse? Amor?! Nunca foi. Amor levado ao extremo nunca causaria dor. A culpa não é de um sentimento entre um homem e uma mulher, mas o sentimento que o homem tem sobre a mulher; o sentimento de que pode e deve agredi-la se ela não corresponder as suas expectativas.

Eu cresci escutando que "quem bate em mulher é covarde" e "em mulher não se bate nem com uma flor". Ao mesmo tempo, via mulheres com olhos roxos andando de cabeça baixa na rua, via pessoas questionando o que a mulher tinha feito para o marido bater nela. Com o tempo eu percebi que eles precisavam colocar a culpa em alguém; e esse alguém não poderia ser o homem. Afinal, ser homem é ser o ápice da sociedade, não podemos condená-lo pela violência que ele comete. O que a sociedade faz é simples - e cruel. Ensina para as crianças que mulheres são intocáveis, sensíveis, donzelas, princesas. Ensina que nas mulheres não se deve bater. Só que, ao mesmo tempo, deixa bem claro o que é uma mulher: Cabelos longos, postura reta, palavras doces, voz baixa, pernas cruzadas, olhos voltados para o chão, uma obediência sem questionamentos, uma pureza inalcançável. É preciso ser essa mulher para não ser agredida. Ensinaram-me, desde crianças, esses dois significados: Não se bate em mulher | o que é ser a mulher que não se pode bater. Enquanto crescia, fui vendo muitas mulheres sendo agredidas. Mulheres demais. Até que entendi que o problema era que elas não haviam seguido o padrão de mulher-que-não-se-pode-agredir. E, graças a isso, os homens tinham o direito de bater nelas, estuprá-las... matá-las.

Eu via muito sangue. Sangue demais para quem cresceu achando que, por ser mulher, nunca apanharia. Só que eu apanhei. Apanhei quando era criança, de um garoto alguns anos mais velho que eu, pois ele achou uma afronta uma menina estar jogando Yugi-oh! Apanhei ideologicamente todas as vezes que justificaram algo com um "você é mulher, não entende!". Apanhei internalmente todas as vezes que vi mulheres sendo agredidas, todas as vezes que vi um crime sair impune, todas as vezes que vi a sociedade tentando culpabilizar a mulher pela violência que sofreu. Eu vi o sangue escorrer, mas não era um sangue vermelho, era um sangue transparente. O sangue estava nos olhos com medo, nas posturas curvadas, nos passos atrás do marido. O sangue estava na revista que tenta "justificar" a violência doméstica relativizando o agressor e culpabilizando a vítima*. O sangue estava no caso Samúdio, onde achavam que a morte dela era necessária pois ela era prostituta. O sangue estava no marido de Nigella que reclamou por ela não defendê-lo após ele a agredir publicamente**.

(*)

(**)

Mata-se por ser homem e morre-se por ser mulher; essa é a violência de gênero que enfrentamos todos os dias. Querem mascarar, relativizar e colocar uma poesia no meio, uma novela sobre o assunto, um filme cheio de sangue. Querem que acreditemos que o ciúmes matou, sem explicar que o ciúmes faz parte do sentimento de posse. Só que mulher alguma é objeto para ter dono. Mulher nenhuma deveria ser agredida. Nem a que se enquadra na sociedade, nem a que se recusa a se enquadrar, nem aquela que simplesmente não se enquadra.

Estão gritando que as mulheres estão morrendo de crimes passionais. Você acredita? Eu não. Não existe crime passional, existe feminicídio.

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