Onde está a mulher? (Da ditadura até os dias atuais)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014
Duas faces cobertas da história do Brasil: A ditadura e a mulher
Em tempos onde a Comissão da Verdade é presente, é fundamental entender qual a memória que a Ditadura Militar Brasileira deixou. Em primeiro plano, vale ressaltar o simbolismo que existe em não se referir à essa época tão rasamente como um regime militar. É preciso dar visibilidade até para o sangue que marca essa época. É preciso dar ênfase à ditadura - e entendê-la como tal. Um governo que escondeu durante muito tempo, pois é fácil não querer ver, uma realidade de torturas, assassinatos e repressão através de um avanço econômico e uma copa do mundo. Nesse texto não pretendo falar amplamente sobre os aspectos gerais da ditadura, entretanto. Levando em consideração que esta ainda é uma época sombria da história do Brasil, quero dar visibilidade à outra questão que é igualmente “deixada para depois”. Enquanto tentaram por tantos anos deixar as marcas da ditadura no passado, tentam igualmente deixar as mulheres em segundo plano. Na vivência diária, das relações interpessoais, nas relações afetivas, na militância, no meio acadêmico. Uma segunda voz é dada às mulheres: uma voz baixa, calma, tranquila. Mulher é considerada a mãe, a progenitora, a esposa, a filha. Nunca a guerreira, a militante. 
Há uma necessidade de rever a imagem que a ditadura deixou -e isso vêm sido feito nos últimos anos. O Brasil está abandonando a ideia de silenciar essa época. É preciso dar voz a ela, deixar que ela fale e deixar que cada pessoa mostre sua cicatriz. É preciso abandonar a ideia ilusória de que foi uma época de flores por causa do milagre econômico e da vitória na copa do mundo. Igualmente é preciso repensar a imagem da mulher nessa época. Uma imagem criada por diversas opressões - algumas que vivenciamos até hoje. Essa imagem é bem explicada, talvez sem essa intenção, dado que ainda vivemos sobre os moldes patriarcais e machistas, através dos filmes sobre a ditadura militar. Onde está a mulher? Existe mulher na militância? Qual o papel da mulher na militância? E a tortura? É igual? É preciso analisar com mais cautela e pensar qual o papel das mulheres nos filmes e no cotidiano. 

A imagem frágil da mulher
Socialmente as mulheres já estão carregadas de um senso comum que diz que elas são submissas. Não só na questão de sempre estarem em segundo plano, mas na ideia de que esse segundo plano é formado de fraqueza. Cabe a elas as tarefas que exigem menos do físico e deixam bem distantes de sua realidade qualquer ato que possa ser considerado político. Desta forma, não poderia ser diferente que a maior parte dos filmes sobre a época da ditadura retratem a mulher como o “sexo frágil”. 
No filme “O ano em que meus pais saíram de férias” fica claro desde o início de o pai e a mãe do protagonista são militantes de esquerda. O final dos dois, entretanto, é diferente. Temos a imagem da mãe, em uma das cenas finais do filme, na cama, sendo cuidada por um médico. Ali ficam claros os sinais de que ela foi torturada pela ditadura. Vale questionar o motivo de ressaltarem a imagem da mãe ao final. Pareceu-me uma forma de amenizar os ânimos de um filme que mostra claramente a alienação causada pelo futebol. Uma criança, que primeiro fora abandonada pelos pais que precisaram fugir e depois abandonada pelo destino graças à morte de seu avô, precisava de um apoio materno para seguir a vida. Cabe a mulher, a mãe, sempre carregar consigo sua cria. Cabe a mãe - e às vezes tão somente a ela - criar a criança. 
Não digo que foi intencional a escolha pela sobrevivência da mulher, muito menos critico ferozmente o filme. A maneira como é abordada a paixão nacional pelo futebol é muito vívida. Militantes de esquerda se reunindo para assistir, comemorar e gritar pelo futebol é uma maneira bem clara de entender como essa alienação se fez presente e forte. Em contrapartida, é de suma importância entender que todas essas memórias deixadas, inclusive nas formas que passam despercebidas e foram criadas sem a intenção de fazê-las, são marcas de um meio social e temporal. 
É imprescindível dar ênfase de que para haver uma crítica à forma como a militância feminina é exposta, é necessário que haja menção à militância feminina - algo que em muitos filmes é deixado de lado e esquecido. “O ano em que meus pais saíram de férias” é um ótimo filme para analisar a forma como as mulheres são vistas, pois para além da militância também existe a mulher que é objeto de desejo e a mulher-menina que se encaixa num ciclo social por agir de maneiras esteriotipadamente masculinas.
Analisando mais cruamente a imagem reproduzida das mulheres, pode-se dizer que há um fetiche em colocar a mulher em forma de objeto - seja de decoração para casa ou de desejo. São as duas primeiras faces que são expostas quando se fala da representação feminina: A mulher que é posta como um artigo de decoração como qualquer outro dentro de casa, aquela que serve ao seu marido sem questionar e que abaixa a cabeça para qualquer ordem vinda de um homem e a mulher que é vista como um pedaço de carne pronto para o abate. 
É importante, por causa disso, enfatizar a militância feminina. Aceitar que a mulher também ocupa os papeis mais forte e, principalmente, que a mulher também tem voz e poder político. 

Tortura
Cada vez mais consegue se fazer visível que a tortura realizada em mulheres era diferente da dos homens. A questão sexual não foi esquecida e muito menos deixada de lado. Com os novos relatos graças à Comissão da Verdade é possível ter uma pequena noção do terror psicológico, físico e sexual que essas mulheres sofreram. 
No relato à Comissão da Verdade de Ana Mércia Silva Roberts, ela deixou claro a situação de “carne exposta” que se encontrou - ao ser colocada nua, de braços abertos e coberta por fios que soltavam descargas elétricas sempre que ela abaixava minimamente os braços. Ela também deixou claro que os torturadores a observavam durante horas - e deixou mais claro ainda que todos eram homens. 
E se hoje não vivemos em plena ditadura militar, não estamos assim tão distantes dela. Os índices de estupro só aumentam e não pode-se deixar esquecer de que esta também é uma forma muito vívida de tortura. Uma tortura física e emocional que persegue mulheres cada vez mais. Uma tortura que socialmente é caracterizada por uma relação de poder e uma questão de gênero muito forte. O estupro é a tortura que permaneceu tão ou mais forte depois da ditadura, que nos acompanha diariamente, que nos maltrata e nos mata.

O machismo na militância de esquerda
Esse é o ponto que menos mudou com o passar dos tempos. A militância ainda não é o lugar da mulher. Ainda é necessário buscar e lutar pela voz dentro dos ambientes de luta. Colocam a voz feminina em último plano, falam que devemos nos calar e falar sobre isso depois, insinuam que sabemos menos de política por sermos mulheres. Isso aconteceu na época da ditadura, justificando o motivo de tratarem, muitas vezes, a militante como descartável, e isso acontece repetidamente nos dias atuais. 
São homens barbudos e vestidos de vermelho que gritam mais alto que a mulher companheira. Impõem no poder da voz o poder que querem - e muitas vezes conseguem - ter sobre a voz feminina. Querem silenciá-las. Calá-las. 
Desta forma é possível - e preciso - afirmar que existe uma grande militância política que grita pela quebra das amarras, mas ao mesmo tempo tem uma escrava dentro de casa. E também ao mesmo tempo tira o espaço que a mulher conquistou. É uma busca incessante por uma liberdade muito individualista. É a ausência de olhos para enxergar que existem milhares de outras amarras fora aquelas que nos prendem. É preciso entender que a liberdade - e a igualdade - só existirá quando não somente uma parte for livre, mas quando as amarras das opressões - inclusive àquelas que não nos amarram, mas nos favorecem - forem quebradas. 
As falas ensaiadas por uma militância excludente são, em grande parte, agradáveis de serem ouvidas. Elas falam o que a maioria quer escutar. Ninguém quer escutar que a mulher está lutando pela liberdade de deixar de ser dona de casa quando não deseja ser. Falam que se a mulher não pode lutar por ela - e deixam de lado o assunto, assim ninguém luta por elas. 
A invisibilidade da militância feminina da época da ditadura era enorme e isso refletiu no pouco que elas apareceram nos filmes que retratam esse período. Essa invisibilidade continua forte nos dias atuais e talvez não estejamos tão longe da ditadura quanto imaginamos. 

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