Separaram o mundo em dois

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Tudo começou quando eu nasci. Na verdade, acho que posso ir além - tudo começou quando minha mãe descobriu que eu era Maria Clara (e não Sebastião). Ganhei roupas rosas herdadas de uma prima um ano mais velha. Ganhei roupas novas em diversos tons de rosa, vermelho, laranja.

Na infância isso continuou. Ganhei coleção de bonecas, ferro de passar de brinquedo, máquina de lavar de brinquedo, uma cozinha inteira mobiliada de brinquedo! Foi designado para mim a delicadeza - mesmo que eu nunca tenha sido um exemplo de delicadeza. A mim foi depositado os mandamentos de calmaria e tranquilidade. Na escola, eu deveria ficar na fila da direita. Cheguei a ser repreendida por "não me sentar como deveria"... não tinha os "modos adequados de uma menina". Nas aulas de educação física, meninas jogavam queimado e meninos jogavam futebol. Quando o colégio começou a oferecer aulas extra depois do horário, eu queria fazer judô - mas me impediram, designaram para mim o ballet. Larguei duas semanas depois. Os meninos fazem judô, as meninas ballet. E viva o rosa naquelas intermináveis aulas de ballet! 

Quando estava na quarta série do ensino fundamental - quinto ano hoje em dia -, isso se afirmou pra mim de maneira bruta: Uma menina jogando Yugi-oh? E vencendo um menino mais velho que ela? Cheguei em casa com o olho roxo. Não era coisa de menina e aquela ação foi justificada para meus amigos como "uma forma de vocês aprenderem a não deixar mulher se meter onde não deve". Escutei muitas vezes que eu era lésbica, sapatão, não-vou-entrar-com-você-no-banheiro-pq-vc-gosta-de-mulheres. E mulher gostar de mulher? Não pode! E naquela época, eu gostava de mulheres da mesma forma que gostava de homens: com o carinho e a inocência de uma criança. 

Na segunda parte do Ensino Fundamental (6ª até 8ª série) as coisas não melhoraram muito. Eu não podia sair da escola sozinha, sem supervisão, por que me consideravam incapaz de atravessar uma rua sozinha. E eu, que primeiro fui criticada por gostar de mulheres, depois fui ensinada a não gostar de mulheres, sempre tive mais amigos homens que podiam tranquilamente passar dos limites da escola. Por que ali era assim: Direitos e deveres completamente diferentes dependendo do seu gênero. Uma escola cristã, regida por freiras, que mostravam para nós o que era o mundo real - embora eu tenha demorado muito tempo para ter tal compreensão. Lá eu aprendi o mundo real ao qual estava inserida, embora tenha ficado anos trancada dentro daqueles muros altos. Era um mundo dividido ao meio. Aos homens e às mulheres: deveres e direitos completamente diferentes (e completamente desiguais). Achei durante muito tempo que aquela escola não me preparou para o Ensino Médio ou para o mundo. Agora percebo que ela somente reproduziu tudo o que o mundo continuou a fazer comigo. 

Durante esse tempo, onde saí da infância e entrei na adolescência, tudo se tratava do gênero. Primeiro me falaram, lá na minha infância, que eu não podia me envolver com mulheres. Me "xingavam" de sapatão, lésbica, caminhoneira. Me acusavam de estar querendo invadir o espaço masculino. Entendi que eu tinha que gostar -eca!- de homens! Então me falaram para não confiar em homens - eles são homens, afinal! Se me assediarem, estão cumprindo seu papel social. Se me seguirem, foi por que eu dei brecha. Se me difamarem, foi por que eu dei motivos. Se me baterem, foi por que eu os provoquei. Tudo dividido em dois lados e se nos homens eu não podia confiar, igualmente não podia confiar nas mulheres. Por que colocaram todas elas contra mim. Por que falaram que eu tinha que ser contra elas. Tudo era questão de beleza, de poder, de sedução. Eu tinha que ser a mais bonita. Eu tinha que ser a mais legal. Ensinaram-me que com mulher a amizade é na base da falsidade - por que colocaram todas as mulheres umas contra as outras. 

Era tudo sobre o gênero - e acabava que eu não podia ter ninguém com quem contar. Se era homem, tinha uma relação de poder clara sobre mim. Se era mulher, nunca poderia manter uma relação saudável e sincera comigo, pois precisávamos sempre estar em um campo de batalha onde somos adversárias. 

As segregações continuaram: Aos homens cabiam as amizades, às mulheres a superficialidade. Aos homens os trabalhos altamente reconhecidos e aplaudidos, às mulheres os trabalhos manuais. Aos homens o poder aquisitivo, às mulheres a fama de "consumistas". Aos homens o poder do orgasmo, às mulheres a questão da vergonha. Aos homens a liberdade, às mulheres suas próprias prisões. Aos homens um respeito infinito, às mulheres uma clama por "se dê ao respeito". Aos homens todos os lugares, às mulheres a beira do fogão. Aos homens toda a glória, às mulheres toda a desonra. 

Hoje, depois de entrar no movimento feminista e entender todos os contextos que me incluíram até então, resolvi abraçar todas as mulheres que queriam que eu batesse. Abraçar todas e tratar cada mulher como uma irmã de alma e de luta. Ensinaram-me o significado de "sororidade" e escolhi por carregá-lo pela vida. Entendi que eu posso ser eu, independente do meu gênero, mas igualmente aprendi que meu gênero faz parte de mim - e o que me construiu foi, em parte, todas as segregações que sofri e todas as opressões que superei e supero diariamente. Aceitei isso como uma luta - uma luta plural e feminina! 

Sim! Feminina! 

Aprendi a amar mulheres - olha que ironia! Voltei a amar mulheres! Aprendi a entender a dor da outra - afinal, se não me atingiu ainda, com certeza me atingirá um dia. Entendi a violência de gênero que se encontra nessa segregação constante. Dividiram o mundo em dois! 

Quando eu cheguei nesse mundo, em Janeiro de 1994, o mundo já estava há séculos divido em dois. Hoje eu apoio uma parte do movimento feminista que se apropria dessa segregação para quebrá-la de dentro para fora. Isso se chama ESPAÇOS EXCLUSIVOS. Eu o defendo no feminismo, no movimento negro, no movimento trans, no movimento LGBT. Eu defendo espaços exclusivos para todos que fomos segregados e oprimidos. 

Se apropriar da segregação, entretanto, NÃO É SEGREGAR! É preciso entender essa diferença. Se estamos à parte da sociedade, se estamos separados e à margem, nos unimos! Nos unimos, nos ajudamos, nos organizamos e lutamos! 

Eu escolhi a posição política de não considerar nenhum homem cis feminista. Isso não quer dizer que eu não acredite que homens podem somar em debates ou que homens não devem apoiar a luta feminista. Acredito que ser a favor da igualdade e liberdade de gêneros é um papel fundamental de todos nós. Só que eu não vou aplaudir homem que desce do seu privilégio e o entende. Eu não vou jogar confete em cima de homem que fala que compreende a luta da mulher. E principalmente: Eu não vou comemorar por que um homem falou pelas mulheres. A minha luta é por mulheres que falem por si.

Aos homens foi ensinado a união, 
as mulheres tiveram que aprender isso sozinhas. 
Isso não é "machismo ao contrário", 
é sobrevivência! 

(Texto para todos os homens que ficam cheios de male tears e apontam o dedo para feministas, acusando-as injustamente, quando as mesmas resolvem não participar de coletivos mistos. Quando mulheres resolvem lutar ao lado de mulheres, não é por que odiamos todos os homens individualmente, mas por que lutamos contra uma imagem social construída de que "ser homem" é ser o ponto mais alto da sociedade. Se mulheres só se sentem seguras conversando com mulheres é por que essas já sofreram agressões demais partindo de homens! Homens que estão dispostos a entender seu privilégio e ajudar na desconstrução desse privilégio, são super bem vindos na luta. Mas entendam, com o máximo de urgência: Auto organização das mulheres É FUNDAMENTAL! A voz e o ponderamento cabe à elas) 

Ps: Durante todo o texto tratei como se só fosse possível haver dois tipos de gênero - e todos de maneira cis. Sei o quanto isso é errado e prejudicial, entretanto quis retratar a visão de mundo que me foi passada antes de eu conhecer as lutas de gênero e sexualidade. Minha luta feminista só é completa se abranger às mulheres trans igualmente como irmãs e lutar por elas e com elas - dando-lhes voz e deixando que gritem por seus direitos. O homem que tanto critico nesse texto é o homem cis, que não sofre com as opressões diárias do machismo e acha que pode pautar o que é ou não uma agressão de gênero. 

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